Opinião
- 27 de julho de 2017
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Entre dores e amores: comunhão na comunidade
Por Karen Bomilcar
“Amar é sempre ser vulnerável. Ame qualquer coisa e certamente seu coração vai doer e talvez se partir. Se quiser ter a certeza de mantê-lo intacto, você não deve entregá-lo a ninguém. Envolva-o cuidadosamente em seus hobbies e pequenos luxos, evite qualquer envolvimento, guarde-o na segurança do esquife de seu egoísmo. Mas nesse esquife – seguro, sem movimento, sem ar – ele vai mudar. Ele não vai se partir – vai tornar-se indestrutível, impenetrável, irredimível. A alternativa a uma tragédia ou pelo menos ao risco de uma tragédia é a condenação. O único lugar onde se pode estar perfeitamente a salvo de todos os riscos e perturbações do amor é o inferno”.
Onde existem pessoas, estamos sujeitos ao sofrimento
Cresci no ambiente de comunhão da comunidade cristã. Ali, aprendi, fui desafiada, encorajada, nutrida e também ferida e decepcionada. Conheci o gosto da tristeza, da traição, da indiferença. Onde existem pessoas e relacionamentos, estamos sujeitos ao sofrimento das relações. Por isso me aproximo do tema de maneira realista, como quem experimentou da ambiguidade deste contexto, mas também experimenta o amor e esperança viva do potencial curador da comunidade cristã através da presença transformadora do Cristo em nós.
Depois de experimentar a dor na comunidade, este trecho de C.S. Lewis em Os quatro amores me relembrou a tentação e os riscos da estagnação neste lugar de dor e isolamento, e me encorajou a caminhar na direção da reconciliação e da renovação do amor pela comunidade. Lembrei que também sou parte da comunidade com potencial de agregar ou ferir. Fui relembrada da aridez da vida quando nos isolamos e dos riscos que isto representa à saúde emocional e espiritual. Meu trajeto de cura também foi em comunidade, experimentando o potencial reconciliador e restaurador que o Espírito Santo promove em nosso meio. Estou falando do corpo de Cristo, família que nos foi dada e que encontramos espalhada ao redor do mundo. Esta expressão visível de Deus que nos identifica para além de traços culturais e idiomas, este corpo de Cristo que se norteia pela Palavra e busca viver essa dinâmica comunitária sob este paradigma.
A fé cristã é relacional, comunitária. É pessoal, porém não é privada. Precisamos uns dos outros para crescer. É desejo de Deus que estejamos todos reunidos em nossa diversidade, promovendo unidade, sendo instrumento e um sinal visível com a missão de levar a luz de Cristo a todos os homens.
Apesar da natureza espiritual da comunidade cristã, precisamos lembrar de que consiste em um agrupamento de seres humanos feridos que necessitam ser resgatados, redimidos e que caminham num constante processo de transformação e conversão de seu próprio coração ao coração de Deus. Os conflitos relacionais serão frequentes, as dores serão inevitáveis, mas somos o povo da reconciliação e isso precisa ser praticado em nosso meio. Mas como entendemos o conceito de comunidade e quais são nossas expectativas e frustrações?
Entender o conceito e a dinâmica da comunidade minimiza a possibilidade de frustrações
A comunidade é comumente descrita como um lugar ou local, e a maioria das pessoas se refere a ele como algo que não permanece com eles uma vez que eles deixam esse espaço particular. É preciso ampliar esta percepção, inserindo o aspecto relacional, pessoas reunidas com um interesse comum, visão, missão ou direção. Embora a comunidade geralmente seja um termo descrito para se referir a um lugar em que ocorre a interação social em torno de laços comuns, a conexão e o sentido de pertença não são necessariamente presentes ou experimentados. É preciso atentar para essa dinâmica relacional.
Em comunidade sabemos que o espaço é compartilhado e que temos limites e possibilidades na interação, mas construímos um espaço de confiança e liberdade para caminhar na direção um do outro. Isso transcende a noção de lugar, mas pode incluir a localização como uma referência para onde esses relacionamentos são desenvolvidos. Buscamos um sentimento de pertencimento e compromisso uns com os outros. Estas expectativas por si só, podem gerar frustração.
Expandindo o conceito de comunidade para a realidade da vida cristã, vemos através deste paradigma que o pecado e a independência criaram nossa alienação de Deus e uns dos outros e que Deus deseja restaurar-nos através do seu Espírito. Nosso modelo para desenvolvimento de relacionamentos deve ser a compreensão do Deus Triúno, a Trindade, como uma comunidade relacional própria, vivida em interdependência e em reciprocidade amorosa.
Um chamado à amizade
O cristianismo pode ser descrito como um chamado à amizade. Como seguidores de Cristo, somos convidados a um relacionamento com Ele, em que não somos mais chamados de servos, mas amigos. É de grande importância reconhecer a necessidade de integrar o mandamento de Deus para amar a Deus com todo o nosso coração e também amarmos nosso próximo. A consciência de que a amizade de Deus para nós é um presente define a prerrogativa de todas as outras relações a serem estabelecidas em comunidade. Assim como a amizade de Deus para nós é graça, as pessoas que Ele nos dá em amizade também são graça para nós. Essa integração é fundamental para a vida cristã e estabelece o paradigma relacional em que devemos viver.
O modelo de interdependência é retratado na vida da Trindade e foi vivido por Jesus no mundo como ele encontrou pessoas. Como Jesus vivia entre amigos e em comunidade, e quando se encontrou com pessoas, ele mostrou a graça presente na interdependência. Em nosso relacionamento com o Cristo a consciência de nossas vulnerabilidades nos confronta com a necessidade de uma vida de humildade e reconhecimento de que somos seres dependentes que precisam da graça de Deus e essa relação nos ensina a deixar nosso isolamento. Uma vida de amizade com Deus presume uma aliança e nossas amizades espirituais também devem ser cultivadas como uma aliança de quem assume um compromisso alegre de uma vida compartilhada à medida que somos moldados à imagem de Cristo.
Sobre a tensão entre dependência e independência, John Stott aborda o tema ao lembrar aos cristãos que, na pessoa de Cristo, Deus nos ensinou que a dependência tem uma dimensão que precisa ser abraçada e que não afeta nosso estado de dignidade como pessoas:
"A recusa de depender dos outros não é uma marca de maturidade, mas de imaturidade (...) Nós chegamos ao mundo totalmente dependentes do amor, cuidado e proteção dos outros. Passamos por uma fase de vida quando outras pessoas dependem de nós. E a maioria de nós vai sair deste mundo totalmente dependente do amor e dos cuidados dos outros ".
A importância do equilíbrio entre autonomia e independência
Fomos criados para a interdependência. Existe uma estreita conexão entre nosso aprendizado e crescimento, e a maneira como desenvolvemos relacionamentos. O que caracteriza uma aliança, um relacionamento, é "conhecer com" ou "na presença de" e isso é algo integral e essencial para aprender e conhecer. Em todas as nossas experiências formativas, percebemos que nossos encontros com a realidade são mediados e interpretados neste contexto de relacionamento, na presença de outro.
Uma das principais dificuldades no estabelecimento de relações autênticas, transparentes e significativas é a presença de pecado em nossos corações, que conduz ao desejo de independência e que nos leva ao individualismo radical. Nossa constante luta entre viver a partir do medo ou a partir do amor é o que prejudica nossa capacidade de abrir nossos corações a Deus e aos outros, pois nos limitamos ao nosso próprio conhecimento sobre quem somos e quem é Deus sem a perspectiva mais ampla que o outro pode oferecer e trazer para nossas vidas.
A cultura também fala contra a dedicação a relacionamentos profundos e significativos. Somos ensinados a viver vidas autônomas e independentes e, em vez de compartilhar nossas vulnerabilidades e fraquezas para um processo de crescimento e cura e estimulados a aprender a gerir sozinhos essas características da melhor maneira possível na tentativa frustrada de impedir novas interferências em outras áreas de nossas vidas. Através do nosso desenvolvimento como pessoas, aprendemos a temer o desconhecido, e ao fazê-lo, ignoramos as contribuições e as perspectivas que os relacionamentos podem nos trazer ou de como ele nos desafiará para mudanças e crescimento.
Como base para a interdependência saudável, existe o contributo fundamental do autoconhecimento, que proporciona benefícios à comunidade como um todo. Em seu poema "Cura", Wendell Berry afirma que “quanto mais coerente alguém se torna em relação a si mesmo como criatura à luz do Criador, mais plenamente adentra na comunhão com todas as criaturas”. Quando a autoconsciência e o autoconhecimento são nutridos, as pessoas entram em comunidade com expectativas mais equilibradas, além de uma noção mais realista de suas limitações e possibilidades. O equilíbrio entre a solitude que traz crescimento e a vida em comunidade é essencial. Extremos são perigosos.
Afinal, o que esperar da comunidade?
Essa noção de limitações e possibilidades é o que dá o tom para o desenvolvimento de relacionamentos saudáveis. As pessoas vão ao encontro da comunidade sobrecarregadas de expectativas e culpa por não ser o que deveriam ser. Embora uma comunidade ideal não exista, uma comunidade deve ser onde as pessoas entendem que são aceitas, apesar de suas fraquezas e limitações existentes. Onde seus dons e possibilidades são incentivados e ativamente envolvidos. Onde oferecemos oportunidades de recomeço e reconciliação.
Ao nos aproximarmos como comunidade cristã, é importante perguntar o que posso ser em comunidade, o que posso oferecer e como posso caminhar. A grande dificuldade dos nossos dias é o caminho inverso, o questionamento do que a comunidade pode me oferecer e como pode satisfazer minhas necessidades e contribuir para a minha vida. Quando foco em Deus e no outro, o Espírito Santo trabalha nas minhas fragilidades enquanto ofereço o que posso e quem sou à comunidade, enquanto sirvo as pessoas ao meu redor e isso é tratado no coração de outros da mesma forma. Quando adentro a comunidade com esta perspectiva, administrar expectativas, tolerar frustrações e permanecer em unidade torna-se um caminho mais viável.
Na comunidade cristã, com nossas práticas espirituais, temos o espaço para celebração, oração, confissão, perdão, transformação. Precisamos uns dos outros, precisamos de Deus em nós e entre nós. Que nas diferentes fases da vida e momentos de nossa caminhada com Deus, possamos encontrar esperança de nutrir, recomeçar e reencontrar a beleza da comunhão com Ele e uns com os outros. Quanto a mim, sugiro: comece ao redor da mesa, nutrindo a fé e compartilhando a vida. Não despreze o potencial dos pequenos encontros, transformadores, que se expandem para toda a comunidade.
Leituras sugeridas
John Stott – O discípulo radical
Jean Vanier – Comunidade e Crescimento
Dietrich Bonhoeffer – Vida em Comunhão
Nelson Bomilcar – Os Sem Igreja: buscando caminhos de esperança na experiência comunitária
Wendell Berry – Livros diversos
• Karen Bomilcar trabalha como Psicóloga Clínica Hospitalar. É mestre em Teologia e Estudos Interdisciplinares - Regent College/UBC (Canadá). Atualmente reside em São Paulo (SP), integra a equipe de liderança do Fórum Cristão de Profissionais (IBAB-SP) e também dedica seu tempo à música, literatura, cuidado pastoral e cultivo de amizades, especialmente ao redor da mesa.
Ilustrações de Anderson Monteiro. Conheça o trabalho dele aqui.
“Amar é sempre ser vulnerável. Ame qualquer coisa e certamente seu coração vai doer e talvez se partir. Se quiser ter a certeza de mantê-lo intacto, você não deve entregá-lo a ninguém. Envolva-o cuidadosamente em seus hobbies e pequenos luxos, evite qualquer envolvimento, guarde-o na segurança do esquife de seu egoísmo. Mas nesse esquife – seguro, sem movimento, sem ar – ele vai mudar. Ele não vai se partir – vai tornar-se indestrutível, impenetrável, irredimível. A alternativa a uma tragédia ou pelo menos ao risco de uma tragédia é a condenação. O único lugar onde se pode estar perfeitamente a salvo de todos os riscos e perturbações do amor é o inferno”.
[C. S. Lewis em Os Quatro Amores]
Onde existem pessoas, estamos sujeitos ao sofrimento
Cresci no ambiente de comunhão da comunidade cristã. Ali, aprendi, fui desafiada, encorajada, nutrida e também ferida e decepcionada. Conheci o gosto da tristeza, da traição, da indiferença. Onde existem pessoas e relacionamentos, estamos sujeitos ao sofrimento das relações. Por isso me aproximo do tema de maneira realista, como quem experimentou da ambiguidade deste contexto, mas também experimenta o amor e esperança viva do potencial curador da comunidade cristã através da presença transformadora do Cristo em nós.
Depois de experimentar a dor na comunidade, este trecho de C.S. Lewis em Os quatro amores me relembrou a tentação e os riscos da estagnação neste lugar de dor e isolamento, e me encorajou a caminhar na direção da reconciliação e da renovação do amor pela comunidade. Lembrei que também sou parte da comunidade com potencial de agregar ou ferir. Fui relembrada da aridez da vida quando nos isolamos e dos riscos que isto representa à saúde emocional e espiritual. Meu trajeto de cura também foi em comunidade, experimentando o potencial reconciliador e restaurador que o Espírito Santo promove em nosso meio. Estou falando do corpo de Cristo, família que nos foi dada e que encontramos espalhada ao redor do mundo. Esta expressão visível de Deus que nos identifica para além de traços culturais e idiomas, este corpo de Cristo que se norteia pela Palavra e busca viver essa dinâmica comunitária sob este paradigma.
A fé cristã é relacional, comunitária. É pessoal, porém não é privada. Precisamos uns dos outros para crescer. É desejo de Deus que estejamos todos reunidos em nossa diversidade, promovendo unidade, sendo instrumento e um sinal visível com a missão de levar a luz de Cristo a todos os homens.
Apesar da natureza espiritual da comunidade cristã, precisamos lembrar de que consiste em um agrupamento de seres humanos feridos que necessitam ser resgatados, redimidos e que caminham num constante processo de transformação e conversão de seu próprio coração ao coração de Deus. Os conflitos relacionais serão frequentes, as dores serão inevitáveis, mas somos o povo da reconciliação e isso precisa ser praticado em nosso meio. Mas como entendemos o conceito de comunidade e quais são nossas expectativas e frustrações?
Entender o conceito e a dinâmica da comunidade minimiza a possibilidade de frustrações
A comunidade é comumente descrita como um lugar ou local, e a maioria das pessoas se refere a ele como algo que não permanece com eles uma vez que eles deixam esse espaço particular. É preciso ampliar esta percepção, inserindo o aspecto relacional, pessoas reunidas com um interesse comum, visão, missão ou direção. Embora a comunidade geralmente seja um termo descrito para se referir a um lugar em que ocorre a interação social em torno de laços comuns, a conexão e o sentido de pertença não são necessariamente presentes ou experimentados. É preciso atentar para essa dinâmica relacional.
Em comunidade sabemos que o espaço é compartilhado e que temos limites e possibilidades na interação, mas construímos um espaço de confiança e liberdade para caminhar na direção um do outro. Isso transcende a noção de lugar, mas pode incluir a localização como uma referência para onde esses relacionamentos são desenvolvidos. Buscamos um sentimento de pertencimento e compromisso uns com os outros. Estas expectativas por si só, podem gerar frustração.
Expandindo o conceito de comunidade para a realidade da vida cristã, vemos através deste paradigma que o pecado e a independência criaram nossa alienação de Deus e uns dos outros e que Deus deseja restaurar-nos através do seu Espírito. Nosso modelo para desenvolvimento de relacionamentos deve ser a compreensão do Deus Triúno, a Trindade, como uma comunidade relacional própria, vivida em interdependência e em reciprocidade amorosa.
Um chamado à amizade
O cristianismo pode ser descrito como um chamado à amizade. Como seguidores de Cristo, somos convidados a um relacionamento com Ele, em que não somos mais chamados de servos, mas amigos. É de grande importância reconhecer a necessidade de integrar o mandamento de Deus para amar a Deus com todo o nosso coração e também amarmos nosso próximo. A consciência de que a amizade de Deus para nós é um presente define a prerrogativa de todas as outras relações a serem estabelecidas em comunidade. Assim como a amizade de Deus para nós é graça, as pessoas que Ele nos dá em amizade também são graça para nós. Essa integração é fundamental para a vida cristã e estabelece o paradigma relacional em que devemos viver.
O modelo de interdependência é retratado na vida da Trindade e foi vivido por Jesus no mundo como ele encontrou pessoas. Como Jesus vivia entre amigos e em comunidade, e quando se encontrou com pessoas, ele mostrou a graça presente na interdependência. Em nosso relacionamento com o Cristo a consciência de nossas vulnerabilidades nos confronta com a necessidade de uma vida de humildade e reconhecimento de que somos seres dependentes que precisam da graça de Deus e essa relação nos ensina a deixar nosso isolamento. Uma vida de amizade com Deus presume uma aliança e nossas amizades espirituais também devem ser cultivadas como uma aliança de quem assume um compromisso alegre de uma vida compartilhada à medida que somos moldados à imagem de Cristo.
Sobre a tensão entre dependência e independência, John Stott aborda o tema ao lembrar aos cristãos que, na pessoa de Cristo, Deus nos ensinou que a dependência tem uma dimensão que precisa ser abraçada e que não afeta nosso estado de dignidade como pessoas:
"A recusa de depender dos outros não é uma marca de maturidade, mas de imaturidade (...) Nós chegamos ao mundo totalmente dependentes do amor, cuidado e proteção dos outros. Passamos por uma fase de vida quando outras pessoas dependem de nós. E a maioria de nós vai sair deste mundo totalmente dependente do amor e dos cuidados dos outros ".
A importância do equilíbrio entre autonomia e independência
Fomos criados para a interdependência. Existe uma estreita conexão entre nosso aprendizado e crescimento, e a maneira como desenvolvemos relacionamentos. O que caracteriza uma aliança, um relacionamento, é "conhecer com" ou "na presença de" e isso é algo integral e essencial para aprender e conhecer. Em todas as nossas experiências formativas, percebemos que nossos encontros com a realidade são mediados e interpretados neste contexto de relacionamento, na presença de outro.
Uma das principais dificuldades no estabelecimento de relações autênticas, transparentes e significativas é a presença de pecado em nossos corações, que conduz ao desejo de independência e que nos leva ao individualismo radical. Nossa constante luta entre viver a partir do medo ou a partir do amor é o que prejudica nossa capacidade de abrir nossos corações a Deus e aos outros, pois nos limitamos ao nosso próprio conhecimento sobre quem somos e quem é Deus sem a perspectiva mais ampla que o outro pode oferecer e trazer para nossas vidas.
A cultura também fala contra a dedicação a relacionamentos profundos e significativos. Somos ensinados a viver vidas autônomas e independentes e, em vez de compartilhar nossas vulnerabilidades e fraquezas para um processo de crescimento e cura e estimulados a aprender a gerir sozinhos essas características da melhor maneira possível na tentativa frustrada de impedir novas interferências em outras áreas de nossas vidas. Através do nosso desenvolvimento como pessoas, aprendemos a temer o desconhecido, e ao fazê-lo, ignoramos as contribuições e as perspectivas que os relacionamentos podem nos trazer ou de como ele nos desafiará para mudanças e crescimento.
Como base para a interdependência saudável, existe o contributo fundamental do autoconhecimento, que proporciona benefícios à comunidade como um todo. Em seu poema "Cura", Wendell Berry afirma que “quanto mais coerente alguém se torna em relação a si mesmo como criatura à luz do Criador, mais plenamente adentra na comunhão com todas as criaturas”. Quando a autoconsciência e o autoconhecimento são nutridos, as pessoas entram em comunidade com expectativas mais equilibradas, além de uma noção mais realista de suas limitações e possibilidades. O equilíbrio entre a solitude que traz crescimento e a vida em comunidade é essencial. Extremos são perigosos.
Afinal, o que esperar da comunidade?
Essa noção de limitações e possibilidades é o que dá o tom para o desenvolvimento de relacionamentos saudáveis. As pessoas vão ao encontro da comunidade sobrecarregadas de expectativas e culpa por não ser o que deveriam ser. Embora uma comunidade ideal não exista, uma comunidade deve ser onde as pessoas entendem que são aceitas, apesar de suas fraquezas e limitações existentes. Onde seus dons e possibilidades são incentivados e ativamente envolvidos. Onde oferecemos oportunidades de recomeço e reconciliação.
Ao nos aproximarmos como comunidade cristã, é importante perguntar o que posso ser em comunidade, o que posso oferecer e como posso caminhar. A grande dificuldade dos nossos dias é o caminho inverso, o questionamento do que a comunidade pode me oferecer e como pode satisfazer minhas necessidades e contribuir para a minha vida. Quando foco em Deus e no outro, o Espírito Santo trabalha nas minhas fragilidades enquanto ofereço o que posso e quem sou à comunidade, enquanto sirvo as pessoas ao meu redor e isso é tratado no coração de outros da mesma forma. Quando adentro a comunidade com esta perspectiva, administrar expectativas, tolerar frustrações e permanecer em unidade torna-se um caminho mais viável.
Na comunidade cristã, com nossas práticas espirituais, temos o espaço para celebração, oração, confissão, perdão, transformação. Precisamos uns dos outros, precisamos de Deus em nós e entre nós. Que nas diferentes fases da vida e momentos de nossa caminhada com Deus, possamos encontrar esperança de nutrir, recomeçar e reencontrar a beleza da comunhão com Ele e uns com os outros. Quanto a mim, sugiro: comece ao redor da mesa, nutrindo a fé e compartilhando a vida. Não despreze o potencial dos pequenos encontros, transformadores, que se expandem para toda a comunidade.
Leituras sugeridas
John Stott – O discípulo radical
Jean Vanier – Comunidade e Crescimento
Dietrich Bonhoeffer – Vida em Comunhão
Nelson Bomilcar – Os Sem Igreja: buscando caminhos de esperança na experiência comunitária
Wendell Berry – Livros diversos
• Karen Bomilcar trabalha como Psicóloga Clínica Hospitalar. É mestre em Teologia e Estudos Interdisciplinares - Regent College/UBC (Canadá). Atualmente reside em São Paulo (SP), integra a equipe de liderança do Fórum Cristão de Profissionais (IBAB-SP) e também dedica seu tempo à música, literatura, cuidado pastoral e cultivo de amizades, especialmente ao redor da mesa.
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